terça-feira, 18 de janeiro de 2011

“TERRA ALHEIA, PISA NO CHÃO DEVAGAR”

Nosso primeiro contato com o sistema de saúde da capital carioca se deu na manhã de segunda-feira, 17 de janeiro. Visitamos a Clínica da Família Hans Jürgen Fernando Dohmann, na zona oeste da cidade... mas afinal de contas, o que são "clínicas da família"?

Esta nomenclatura, "clínica da família", só é utilizada aqui no Rio de Janeiro. Ponderando as explicações que ouvimos e as discussões que realizamos sobre esta questão, cheguei a conclusão que este tipo de serviço corresponderia a uma tradicional Unidade Básica de Saúde (UBS), porém com um aporte de recursos um pouco maior. Aliás, isso demonstra uma particularidade interessante sobre o Sistema Único de Saúde: ainda que seja único, universal e com diretrizes e princípios válidos em todo país, suas características de funcionamento podem variar conforme as peculiaridades de cada região do Brasil.

Outro estranhamento me ocorre logo na entrada: a arquitetura do local é totalmente diferente de qualquer lugar destinado à saúde que eu já possa ter visto antes. O desenho do prédio, à primeira vista, me lembra alguma paisagem futurista de filme de ficção. No entanto, vendo e entendendo melhor esta estrutura, me dou conta de que seus quês e porquês tem tudo a ver com o aqui e agora (espaço-tempo onde as coisas já ou ainda estão realmente acontecendo).

Múltiplos espaços, setores e salas foram estruturados a fim de organizar da forma mais eficiente possível o fluxo de usuários pelo serviço. Notemos o espaço central da clínica, na foto acima. O local, além de ser amplo, me pareceu deveras acolhedor. Os bancos que podem ser vistos na foto são um local de espera apenas para as pessoas que serão atendidas naquele determinado local da clínica. Bancos como estes são espalhados por todo espaço central, conforme a distribuição das salas e serviços que são prestados no interior de cada uma delas. Ou seja, a (im) popular sala de (des)espera, comumente presente em diversos serviços integrantes do SUS (e que costuma ser realçada por aquela mídia que milita pelo fracasso do Sistema) simplesmente não existe aqui. Na verdade, a espera por atendimento se dá de forma descentralizada, cada pessoa já espera no local que será atendida, espera pelo profissional específico que lhe atenderá. Isto porque, quando ela chega ao serviço, desde a entrada, ela já é direcionada ao local onde será atendida. Um primeiro acolhimento/escuta é feito logo na entrada, onde existem quatro balcões de atendimento. Estas posições são ocupadas por agentes comunitários.

O branco asséptico, tão comumente encontrado na paisagem hospitalar, já não é predominante neste local. Compartilha com outras cores o espaço, às vezes se transformando num colorido que imprime subjetividade àquilo que antes era apenas mais uma parede.

Aliás, entre a parede e o teto, é possível observar imagens ampliadas de usuários e usuárias daquele território, que foram fotografados durante o processo de construção desta clínica (foi inaugurada em 24 de outubro de 2010). A escolha das imagens que apareceriam ampliadas no serviço ocorreu junto da comunidade, participando deste processo usuários, profissionais e demais atores sociais envolvidos. Isto parece conferir um grau de identidade com o local, reconhecimento de si, de seus vizinhos, enfim. Muitos usuários tiram fotos junto destas imagens, ao reconhecerem seus parentes, vizinhos, amigos....

Ao fundo da clínica, existe uma pequena horta, à qual periodicamente vem um engenheiro agrônomo que procede a extração de algumas mudas para doação ou replantio. No entanto, esta horta tem por objetivo o engajamento dos usuários em seu cultivo e manutenção, o que ainda não está ocorrendo de fato, já que a clínica existe a menos de 3 meses.

Após conhecermos os principais espaços da clínica, fomos conhecer a "Academia Carioca". Trata-se de um espaço com equipamentos adaptados para a prática física dentro do próprio serviço de saúde. Antes disso, foi nos apresentada uma breve explicação sobre este trabalho, seus objetivos, , origens....

A idéia destes equipamentos adaptados surge inicialmente na cidade de Maringá, no entanto, lá, ela se restringe ao uso em parques, praças, etc. É no Rio de Janeiro que se incorpora esta academia dentro do serviço de saúde, com o objetivo de trazer as pessoas pra dentro da clínica a partir da idéia de saúde, e não simplesmente para combater doenças, como de costume quando alguém procura ajuda num serviço de saúde. Trata-se de uma tentativa de ampliar o conceito de saúde.

Realmente, só o fato da academia estar dentro da clínica, já promove uma mudança de paradigma, por si só. Além disso, é visível o retorno das pessoas, seu sentimento de acolhimento, pertencimento e satisfação de estar num espaço como aquele. É impressionante como a prática das atividades em grupo é capaz de criar um espaço de vínculo e escuta entre as pessoas e o professor de educação física.

Espero que esta iniciativa da academia carioca se alastre pelo Brasil afora. Mas que também promova a introdução de outras práticas corporais no âmbito dos serviços de saúde. Que seja disparadora e potencializadora de contínuos e criativos processos de trabalho que envolvam o corpo, suas práticas, e não o dissociem das demais dimensões do viver humano. Penso que uma iniciativa bela e revolucionária como esta não pode ocultar o fato de que o discurso biomédico persiste e também se reinventa dentro das mudanças que ocorrem justamente na tentativa de superar este modelo de atenção.

Promover outras práticas corporais dentro do serviço de saúde, associá-las com a noção de promoção de saúde, expandir a rede para fora da clínica....são algumas das tarefas que me parecem mais necessárias para que a academia não tenha como propósito principal apenas a prática de exercícios específicos pensados e construídos a partir da lógica do combate de doenças.

Para que as práticas que mexem com o corpo, não mexam apenas com o corpo, e que não sejam apenas mais uma pílula disponível na prateleira dos remédios.

O título desta postagem se refere a música "José", de Mestre Ambrósio:

http://letras.azmusica.com.br/letras_mestre_ambrosio/letras_other/letra_jose.html



2 comentários:

  1. A visualização das imagens da clínica de família e o depoimento do Felipe, realmente nos faz refletir sobre o que temos em nossos territórios... Vamos aguardar para saber um pouco mais dessa realidade,aprendermos juntos e multiplicar sobre um SUS possível e efetivo.
    Vera Rocha

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  2. Felipe, parabéns pela escrita, seus depoimentos são muito ricos. Mostrando um pouco da realidade no Rio, você nos ajuda a pensar em diferentes maneiras de promover saúde e quantas coisas podemos inventar, reinventar e construir sem sessar. Mas sabemos que o crescimento de algumas práticas dependem de investimentos,principalmente da vontade política e seu conceito sobre saúde.
    Fico orgulhosa e feliz de saber que o "estagiário" e amigo com quem vivencio algumas propostas de inserção de Praticas Corporais no SUS está alçando voôs e enxergando com olhar panorâmico e crítico diferentes realidades e possibilidades. O melhor de tudo é que esses voôs acabam ajudando muitos outros na coragem de voar. Abraços,
    Angélica Adamoli

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