Era o final de tarde da sexta-feira 28/01, e eu estava indo até o CAPS III do Complexo de Saúde Rocinha. Passaria aquela noite no plantão noturno do CAPS, como haviam feito quatro colegas antes de mim. Até aquele dia, nenhum problema ou situação que fosse digna de maiores discussões ou estranhamentos. Mas os que voltavam de lá, na manhã do dia seguinte, quando passavam por mim diziam: “não aconteceu nada de mais.... mas você vai dar sorte, justo na sexta-feira, dia do batidão....” Fiquei boladão, como dizem os cariocas.
O batidão é uma festa funk que acontece todo fim de semana no interior da Rocinha...local de referência para muitos, no que diz respeito a lazer, descontração, bebedeira e muitas vezes acertos de contas, pendências... Talvez por isso toda essa promessa de que “na sexta-feira vai bombar o CAPS”
Bom, mas voltando ao final da tarde no CAPS, cheguei para acompanhar a reunião de fim de turno entre os profissionais que estavam durante o dia no serviço (alguns deles). Alguns casos específicos, envolvendo situações peculiares, precisavam ser discutidos em equipe, afim de se pensar em estratégias de intervenção, reelaboração de planos terapêuticos, etc...algumas frases e expressões ficaram pinicando no meu ouvido por diversas vezes naquela reunião, tais como “continua no acolhimento”, “paciente envolvido com drogas”, “tirar toda medicação pra limpar ele”, entre outras que poderiam ser extensamente discutidas, sob diferentes enfoques, em alguma dissertação ou tese, e que fazem parte do cotidiano de um serviço de saúde mental.
Mas uma situação específica me chamou atenção. Uma situação específica que desencadeou uma discussão peculiar, digna de ser contada aqui, pelo menos por cima.
Na noite anterior, um usuário, T., que pensava ser M.J., segundo a psiquiatria pelo fato de possuir um transtorno de personalidade, estava no serviço, afim de passar a noite lá, conforme seu plano terapêutico indicava. T. gostava de fumar, assim como N pessoas também o gostam de fazer, por X motivos. O pessoal do CAPS possui algumas combinações quanto a isso, em alguns espaços ao ar livre usuários e trabalhadores gozam do direito de exercer o seu hábito. No entanto, T. foi proibido de fumar, pois queria fazê-lo dentro do quarto onde deveria dormir. E ainda por cima, estava com um isqueiro, não quis dá-lo a equipe. Ai entra esse ponto polêmico: existe a combinação (entre a equipe) de não permitir que os usuários que fumam possuam consigo isqueiro. Mas porque? Para que não se fume dentro do quarto?
Durante a reunião, deu pra perceber que não era bem esse o motivo da proibição do isqueiro. Uma trabalhadora relatou que teme a possibilidade do usuário ficar com seu isqueiro durante a noite, pois o mesmo pode ter um surto, e “botar fogo em tudo”. O velho discurso do louco em potencial ressurge com tudo, e saltita gracioso pela sala.
No fim das contas, naquela noite anterior, o usuário T. acabou se irritando com esta imposição, e foi embora do CAPS. Antes disso, havia dito que queria ficar com seu isqueiro, pois se sentiria como uma criança se tivesse que dar seu utensílio para alguém, tendo que pedir o objeto toda vez que quisesse fumar. Foi pelos ares, junto com a fumaça do cigarro, a possibilidade de se trabalhar a autonomia deste sujeito.
Bem, mas a discussão sobre esta situação se findava, quando começamos a ouvir vindo de longe e se aproximando sons de grito e barulhos diversos. Tratava-se da chegada da usuária R., que a alguns dias não comparecia ao CAPS. R. foi uma pessoa que esteve institucionalizada durante anos em algum hospital psiquiátrico desse Rio de Janeiro afora. Passou a ser acompanhada pelo CAPS a alguns meses, segundo a equipe, com o recado do pessoal do hospital de que seria “um caso perdido”. E naquele momento, R. retornava em crise, possivelmente parara com a medicação, ou não, e tinha indícios de ter consumido cocaína a pouco tempo. Estava bastante agitada. Um trabalhador olhou para mim e disse “mas você é pé frio, hein?”, pensei comigo “é hoje que vai bombar”.
Acompanhei a abordagem da equipe que estava naquele momento no CAPS. R. não parava sentada, se movimentava de um lado para outro, gritando com sua mãe, xingando todo mundo que estava em volta. Mesmo assim, os trabalhadores se aproximaram para conversar com ela. O que falava ficava mais próximo, os demais um pouco mais distantes. O trabalhador em questão tentava conversar com ela, perguntando o que aconteceu, entre outras coisas que não consegui entender naquele momento (pois não ousei acompanhar a abordagem tão de perto). Conforme R. ia entrando na conversa, ia sendo convencida a tomar a sua medicação, o famoso SOS (medicação previamente prescrita para casos de emergência, crise). E ela foi se acalmando.
Algum tempo depois, ela acabou indo tomar banho. E quando voltou, foi jantar na cozinha do CAPS, junto com os demais. Comeu a sua comida, lavou seu prato, jogou os restos no lixo. Como qualquer outra pessoa. “Caso perdido”? Caso perdido são os manicômios do tipo onde R. esteve jogada ao deus dará durante anos.
De fato, os primeiros acolhimentos de R. não foram fáceis, conforme me relataram alguns trabalhadores. Muitos deles foram agredidos, já que era mais comum R. chegar bem mais agitada do que ela chegou naquela noite em que estive no CAPS. Na verdade, os trabalhadores interpretam esta agressão também de outra forma. Consideram a atitude de R. nas primeiras vindas ao CAPS como uma defesa, já que a única forma de abordagem a que R. estava acostumada a ser submetida, enquanto no manicômio, era a porrada. Nada mais natural que esperasse esta abordagem também no CAPS, e que procurasse se defender previamente, do jeito que desse.
Outra questão curiosa é que R., tanto no seu período de maior agitação, quanto após a janta, sentia uma intensa necessidade de fumar. E fumava, num espaço ao ar livre que ficou aberto até umas 10 da noite. Um cigarro não durava mais do que alguns segundos na boca de R., tamanha era a vontade e a velocidade com que fumava.
Os cigarros que R. fumava vinham de um maço que sua mãe havia fornecido para a equipe, para saciar o desejo de R. fumar, já que R. ficava agitada quando sentia essa vontade. E como a equipe lidava com essa situação?
No início da noite, enquanto R. estava bastante agitada, os cigarros eram fornecidos pela equipe conforme R. solicitava. Num determinado momento, quando mais calma, acontece uma situação que acho bem interessante. Entra em cena a atuação de um dos seguranças do CAPS. Este segurança em questão, ao ser abordado por R., que queria mais cigarros, estabelece o seguinte diálogo com R.:
- Quanto cigarros você ainda quer?
- Três (após alguns segundos de silêncio).
- Eu acho que três cigarros é muito essa hora da noite. Vou te dar mais um. Pode ser?
- Tá bom, pode ser.
R. fumou aquele cigarro, e minutos mais tarde foi pedir mais um, ao que o segurança responde:
- Mas nós não combinamos que era só mais um cigarro?
- Eu quero fumar!
- Você disse que queria mais três cigarros, eu propus mais um. Você concordou, nós fizemos um acordo.
- Mas eu quero fumar!
- Não foi isso que eu e você combinamos
- Eu quero fumar!
Num primeiro momento, achei muito chata essa situação, o segurança do CAPS não permitindo que a usuária fumasse, o seu próprio cigarro. Mas então, conversando com os trabalhadores, pude entender um pouco melhor esta situação.
A mãe de R. costuma deixar os cigarros com a equipe, para que R. não os fume tão rapidamente. Das primeiras vezes, conforme R. ia pedindo pelos cigarros, a equipe ia fornecendo. Em questão de uma ou duas horas, ela fumava todo maço, e no restante da noite ficava pedindo por mais cigarros, para outros usuários, para os trabalhadores, inclusive estes últimos fornecendo as vezes o seu próprio cigarro para acalmar R.. Então, a equipe chegou a conclusão que era preciso achar uma forma de dosar o maço de cigarro de R., para que durasse a noite inteira, e também para que R. aprendesse que, como tudo na vida, o cigarro também tinha a sua finitude! E a negociação que o segurança fazia com ela acabava sendo uma estratégia, uma forma de R. perceber estas coisas. Assim como a tentativa dos trabalhadores de que R. aprendesse a fumar mais devagar...E foi aí que vi toda essa situação com outros olhos, percebi que o que eu presenciara era uma cena talvez inusitada: o segurança do CAPS pondo em prática a política de redução de danos!
Sobre este segurança, posso dizer que admirei muito tê-lo conhecido, tirei o chapéu pra ele! Antes da situação contada acima, estive conversando por alguns minutos com esta pessoa. Ele me falava que nasceu e se criou dentro da própria Rocinha, me falou um pouco da história do bairro, da mobilização dos moradores, da situação atual, a iminência da ocupação do bairro pelas UPPs... E me falou também sobre sua atuação enquanto segurança, e sua relação com os usuários do serviço, e com a equipe de trabalhadores. Nesta conversa, tive a honra e oportunidade de escutar uma frase que me marcou profundamente, talvez a frase que mais me marcou em todo VERSUS:
- “Eu sou contratado pra cuida do patrimônio, mas o maior patrimônio é a vida humana, por isso que eu também cuido deles (os usuários)”.
Neste momento, eu entendi o que era integralidade. Já escutei sobre esse conceito na faculdade, já li alguma coisa sobre isso, já vi professores se degladiando para explica-lo. Mas naquele momento eu não estava diante de um conceito, eu estava diante da prática. E foi um segurança contratado por uma organização social para zelar pelo prédio, e que possivelmente nunca frequentou um curso superior, que me deu a lição mais clara sobre integralidade. Cuidar do prédio não fazia sentido, se quem estiver dentro do prédio não for cuidado, afinal de contas o prédio foi construído para se cuidar das pessoas que ocupam ele, e que nele se ocupam. As dependências do CAPS não são uma parte isolada de quem o frequenta, assim como quem o frequenta, frequenta a partir do modo como se localiza dentro da estrutura, entre outras coisas. A especificidade do segurança é cuidar do prédio, mas o prédio não funciona se não houver pessoas que o frequentem e usufruem das suas instalações. Logo, a relação patrimônio-pessoas constitui-se enquanto um inteiro, uma totalidade, não podendo ser cuidados separadamente. Acho que já deu pra entender, né?
O restante da noite foi de silêncio e tranquilidade, até deu pra tirar um cochilo. De um dos quartos do CAPS, donde eu estava deitado, podia ouvir vindo lá de fora alguns sons de música, gargalhadas, passos. Nada de tiros, balas perdidas, pessoas surtando, ou qualquer outra coisa que a gente costuma ver no Jornal Nacional (quando digo “a gente”, na verdade eu me refiro apenas a você, que ainda assiste televisão). Mesmo assim, a partir do que presenciei e aprendi naquele lugar, posso dizer que a noite realmente bombou, como todo mundo estava prometendo...
Adorei o texto, bem como tenho gostado muito deste espaço!
ResponderExcluirParabéns!
Abraço,
Dani Miranda
Boa, Felipe! Tudo isso em uma noite. Abraço!
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