terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

SAÚDE MENTAL: DO USUÁRIO, DO TRABALHADOR, DO SISTEMA


Após um final de semana mais “teórico”, onde tivemos palestras e oficinas sobre fotografia e busca de artigos em bases de dados, na segunda-feira (24/01) voltamos a visitar serviços de saúde da cidade do Rio de Janeiro (afinal de contas, foi pra isso que viemos!). Desta vez fomos até o Complexo de Saúde da Rocinha, que se constitui de uma UPA, um CAPS III e um PSF. Mais especificamente, visitamos o Centro de Atenção Psicossocial Maria do Socorro Santos, primeiro CAPS III fundado no Rio de Janeiro, em março do ano passado.


Por ter menos de um ano de existência, este CAPS ainda está com sua capacidade de atendimentos bem abaixo do que sua estrutura é capaz de suportar. Ele também acolhe demandas relacionadas a álcool e outras drogas, pelo fato de não haver CAPS AD 24 horas no Rio de Janeiro (dependendo de cada caso, o usuário com este tipo de demanda pode ser encaminhado a algum CAPS AD, ou ser acompanhado no próprio serviço). Como o coordenador Tiago comentou, o SUS não é igualzinho, cada local é diferente, o SUS também se adapta a realidade de cada local. E a realidade da Rocinha também é composta por situações que envolvem o tráfico, a violência e o uso e abuso de substâncias psicoativas (considero a palavra “drogas” uma expressão muito forte, prefiro restringi-la apenas às substâncias fabricadas pela indústria farmacêutica). Claro, também cabe lembrar que a tríade tráfico-violência-uso/abuso de substâncias não está entendida aqui como numa relação de causa-efeito, como se uma coisa resultasse na outra (as vezes, uma delas impede que a outra aconteça). Tudo isso pra explicar que, dada a complexidade do cenário em que se insere este serviço de saúde, e da situação atual da rede de atenção a saúde mental do Rio de Janeiro, o CAPS III Maria do Socorro acaba acolhendo, sem nenhum problema, usuários com sofrimento em decorrência do abuso de substâncias psicoativas, ouvindo-os, traçando planos terapêuticos, fazendo um acompanhamento amplo de suas vidas e inclusive, quando necessário, tratando-os medicamentosamente (uso de drogas farmacêuticas). Só pra desconstruir e relativizar alguns conceitos.
Outro ponto importante na fala do Tiago, também tem a ver com questões culturais, eu diria. Na população deste território (assim como, creio eu, de uma maneira geral) ainda predomina a lógica manicomial nos momentos de crise e necessidade de intervenções em saúde. Ou seja, nestas situações, a maioria das pessoas procura os hospitais psiquiátricos que ainda existem na cidade, buscando a internação. Ainda é necessário investir esforços e trabalho na ideia do acompanhamento em casa (no território, com a família e redes sociais afins), na desinstitucionalização e desconstrução do discurso do “louco” e o perigo em potencial que se esconde nele. Aliás, o mundo seria bem melhor se cada um e todos nós deixássemos de trancar a nossa parte “louca” (que não é uma parte, mas um inteiro dos tantos que também somos) nos nossos próprios manicômios que inventamos para nós e para os outros (um trabalho frustrante, uma relação desgastada, uma fé cega, etc). Enfim, o CAPS como uma referência, trabalhando através do triplo eixo clínica-território-redes sociais, e não como um novocômio.


 
Mas continuando sobre o CAPS em questão: na quarta-feira, 26/01, retornamos ao serviço, e acompanhamos uma reunião de matriciamento entre profissionais da equipe do CAPS com profissionais da Clínica da Família do Complexo Rocinha. Apesar de o complexo funcionar a aproximadamente 10 meses, a reunião em questão era a primeira de matriciamento que estava se conseguindo fazer entre as equipes daqueles serviços. Um momento histórico! E eu estava lá!
Sobre o matriciamento: a partir do que os atores envolvidos no processo explicaram, e até onde entendi e já vi, o matriciamento se trata de um processo contínuo de transferência de um saber específico de pessoas/profissionais da atenção especializada para outros profissionais/pessoas da atenção primária, com o objetivo de aumentar a resolutividade da atenção primária e diminuir os encaminhamentos desnecessários.
Pois bem, estávamos todos lá, eu, mais alguns colegas, a equipe de saúde mental do CAPS, uma médica e algumas agentes comunitárias da clínica da família. E eu ansioso pra ver como começaria esse processo, essa rede a ser construída, essa ponte entre a saúde mental e a atenção primária, naquele local... E não por acaso, começou de uma forma meio “louca”, já que a demanda primeira, principal e mais urgente dos profissionais da clínica se referia a saúde mental. À própria saúde mental.
Naquele espaço-tempo, os profissionais da clínica se sentiram a vontade para expor suas angústias, sofrimentos, frustrações... A médica de família, por exemplo, relatou situações em que dá conta de coisas que extrapolam o momento da consulta, ou sua atuação enquanto médica. Isso é lindo, se pensarmos pela lógica da integralidade, no olhar pra além da sua formação. Mas é terrível e perverso, quando se percebe o sofrimento desta pessoa, não só por não ter tido uma formação mais ampla, mas também por se sentir sobrecarregada com seu trabalho, sentindo a ausência de profissionais de outras áreas no serviço para lhe auxiliar.
O sofrimento também aparece na fala das agentes comunitárias, que se dizem também sobrecarregadas, tanto pela quantidade de trabalho, tanto pelo envolvimento emocional que acabam tendo (afinal de contas, elas moram no território, problemas que afligem os usuários, também muitas vezes são problemas que afligem toda comunidade). Uma das agentes, inclusive, perguntou se não era possível fazer uma “terapia” com o povo da atenção primária, devido a tal carga emocional que estão expostos todo dia.
No decorrer da reunião, o povo do CAPS tentou discutir esta demanda do povo da atenção primária. Conversou-se sobre possibilidades de parcerias com entidades, organizações locais e comunitárias, como uma ferramenta de auxílio ao combate de vários problemas coletivos, e que acabam afligindo cada um, individualmente. Também se falou sobre possibilidades de lidar com esse sofrimento relacionado ao trabalho, no dia-a-dia. Enfim, a leitura que faço é de que a reunião de matriciamento na verdade foi um grande acolhimento que o povo do CAPS fez com o povo da atenção primária, inclusive ambos traçando um plano terapêutico conjunto.
Foi uma experiência bem interessante, a despeito de ter sido apenas uma reunião, não foi apenas uma reunião. Presenciamos os primeiros passos da constituição de uma rede entre profissionais de dois serviços distintos, que apesar de estarem situados fisicamente em dois espaços que são praticamente colados um ao outro, levou uns 10 meses para “notar” esta cola...

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